Faz de conta.
Fazia de conta que ela era
uma mulher azul porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de
conta que fiava com fios de ouro as sensações, faz de conta que a
infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia
não se abrira e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo
escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas
isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do
faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o
faz de conta verde-cintilante, faz de conta que amava e era amada, faz
de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava
deitada na palma transparente da mão de Deus, não Lóri mas o seu nome
secreto que ela por enquanto ainda não podia usufruir, faz de conta que
vivia e não que estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se
aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de
braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se
embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que
ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que
lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para
olhar a cor da lua pois ela era lunar, faz de conta que ela fechasse os
olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de
gratidão, faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta, faz de
conta que se descontraía o peito e uma luz douradíssima e leve a guiava
por uma floresta de açudes mudos e de tranqüilas mortalidades, faz de
conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando
por dentro — pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração
estava molhado; ela saíra agora da voracidade de viver.
Haaaaaaa, essa é a Clarice...
Haaaaaaa, essa é a Clarice...
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