terça-feira, 31 de março de 2015

Janelas





Por ti junto aos jardins cheios de flores novas
me doem os perfumes da primavera.
Esqueci o teu rosto, não me lembro de tuas mãos,
como beijavam os teus lábios?
Por ti amo as brancas estátuas adormecidas nos parques,
as brancas estátuas que não têm voz nem olhar.
Esqueci tua voz, tua voz alegre,
me esqueci dos teus olhos.
Como uma flor a seu perfume,
estou atado à tua lembrança imprecisa.
Estou perto da dor como uma ferida,
se me tocas me farás um dano irremediável.
Não me lembro mais do teu amor e no entanto
te adivinho atrás de todas as janelas.
Por ti me doem os pesados perfumes do estio:
por ti volto a espreitar
os signos que precipitam os desejos,
as estrelas em fuga, os objetos que caem.




Pablo Neruda

segunda-feira, 30 de março de 2015

Conhece-te a ti mesmo




“Aquele que conhece os outros é sábio; aquele que conhece a si mesmo é iluminado; aquele que vence os outros é forte; aquele que vence a si mesmo é poderoso; aquele que conhece a alegria é rico; aquele que conserva seu caminho tem vontade; seja iluminado, e permanecerás íntegro; curva-te, e permanecerás ereto; esvazia-te, e permanecerás repleto; gasta-te, e permanecerás novo. O sábio não se exibe, e por isso brilha; ele não se faz notar, e por isso é notado; ele não se elogia, e por isso tem mérito; e, por não estar competindo, ninguém no mundo pode competir com ele.” 

(Lao Tsu)

sábado, 28 de março de 2015

Mulheres Nuas





Nem Tão Nuas 


Ah! Cranach, como eu gosto
dessas mulheres nuas que você pinta
com seus pequenos seios
suas barrigas
e ao alto os chapelões cheios de plumas.
E as Salomés, que graça
segurando cabeças de Batista
com a mesma elegante displicência
com que outras, no colo,
afagam cães de raça.
Mas há nessas mulheres
escondido
atrás da boca fina
ou do olhar oblíquo
um luzir de punhal
um gelo ambíguo que
embora estando nuas
lhes põe vestido.

Marina Colasanti

sexta-feira, 27 de março de 2015

Sexta-Feira




Sexta-feira à noite

Sexta-feira à noite
os homens acariciam o clitóris das esposas
com dedos molhados de saliva.
O mesmo gesto com que todos os dias
contam dinheiro papéis documentos
e folheiam nas revistas
a vida dos seus ídolos.


Sexta-feira à noite
os homens penetram suas esposas
com tédio e pênis.
O mesmo tédio com que todos os dias
enfiam o carro na garagem
o dedo no nariz
e metem a mão no bolso
para coçar o saco.



Sexta-feira à noite
os homens ressonam de borco
enquanto as mulheres no escuro
encaram seu destino
e sonham com o príncipe encantado.


Marina Colasanti

quinta-feira, 26 de março de 2015

Desculpe






Sob uma estrela pequenina



Me desculpe o acaso por chamá-lo necessidade.

Me desculpe a necessidade se ainda assim me engano.
Que a felicidade não se ofenda por tomá-la como minha.
Que os mortos me perdoem por luzirem fracamente na memória.
Me desculpe o tempo pelo tanto de mundo ignorado por segundo.
Me desculpe o amor antigo por sentir o novo como primeiro.
Me perdoem, guerras distantes, por trazer flores para casa.
Me perdoem, feridas abertas, por espetar o dedo.
Me desculpem os que clamam das profundezas pelo disco de minuetos.
Me desculpe a gente nas estações pelo sono das cinco da manhã.
Sinto muito, esperança açulada, se às vezes me rio.
Sinto muito, desertos, se não lhes levo uma colher de água.
E você, falcão, há anos o mesmo, na mesma gaiola,
fitando sem movimento sempre o mesmo ponto,
me absolva, mesmo se você for um pássaro empalhado.
Me desculpe a árvore cortada pelas quatro pernas da mesa.
Me desculpem as grandes perguntas pelas respostas pequenas.
Verdade, não me dê excessiva atenção.
Seriedade, me mostre magnanimidade.
Ature, segredo do ser, se eu puxo os fios das suas vestes.
Não me acuse, alma, por tê-la raramente.
Me desculpe tudo, por não estar em toda parte.
Me desculpem todos, por não saber ser cada um e cada uma.
Sei que, enquanto viver, nada me justifica
já que barro o caminho para mim mesma.
Não me julgues má, fala, por tomar emprestado palavras patéticas,
e depois me esforçar para fazê-las parecer leves.



Wislawa Szymborska - escritora polonesa, 
ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura 1996

segunda-feira, 23 de março de 2015

Café




Há algum tempo atrás, eu adorava tomar Nescafé...  Aquele pó granulado que a gente poe na água e mistura para "substituir" o café de verdade. Não fazia café pois achava que coar café só pra mim não seria viável. Então me satisfazia com aquele substituto fajuto do café.  Mas, um dia, resolvi que eu merecia tomar o meu café todos dos dias. Pois eu adoro café. O cheiro de café coado, aquele aroma que perfuma a casa, o sabor inigualável. Então coo na minha xícara, só para mim, meu próprio café. Me sinto realizada e plena... E com essa pequena decisão, levo esse pensamento para outras áreas da minha vida. Minhas escolhas são pautadas naquilo que me fazem sentir bem. Escolhas simples, que transformam o dia a dia. A palavra "substituto" não faz parte da minha vida. Vivo o que gosto, com toda a plenitude que houver no momento. Não me obrigo a aceitar e viver coisas que socialmente são melhores. Vivo o que é melhor pra mim. Não me forço a representar um papel que não me encaixo verdadeiramente. E na vida, a cada amanhecer, entre um café e outro, com um sorriso ou não, tenho a certeza que o que expresso em meu rosto é a verdade da minha alma, que não tem porque mascarar sua voz.


Waleska Raquel

quarta-feira, 18 de março de 2015

Sem Medida




"Talvez eu seja
O sonho de mim mesma.
Criatura-ninguém
Espelhismo de outra
Tão em sigilo e extrema

Tão sem medida
Densa e clandestina


Que a bem da vida
A carne se fez sombra.

Talvez eu seja tu mesmo
Tua soberba e afronta.
E o retrato 
De muitas inalcançáveis
Coisas mortas.

Talvez não seja.
E ínfima, tangente
Aspire indefinida
Um infinito de sonhos
E de vidas."

(Hilda Hilst In Cantares de perda e predileção, 1983)

terça-feira, 10 de março de 2015

Vazio





Os apaixonados felizes não podem produzir literatura 
por não estarem diante do Vazio. 
Estão diante do Pleno. 
E o Pleno não precisa de palavras.


Se eu pudesse viver minha vida novamente... 
- página 106 - Rubens Alves

quinta-feira, 5 de março de 2015

Moço das mãos de ferrugem




Moço dos olhos verdes
Dos gestos simples
Do coração puro
Das mãos de ferrugem...

Moço da inteligência de poucos
Do sol nas omoplatas...
Da vida maltratada...

Quem olha e vê sua alma de verdade
Se engrandece em saber das suas conquistas

Moço da sinceridade..
Moço da verdade.
Moço.

Que Deus te guarde e proteja.
Não da forma como a religião vê, 
Mas como você merece.


WR.

terça-feira, 3 de março de 2015

Ás Seis...





Ás seis da tarde
as mulheres choravam
no banheiro.
Não choravam por isso
ou por aquilo
choravam porque o pranto subia
garganta acima
mesmo se os filhos cresciam
com boa saúde
se havia comida no fogo
e se o marido lhes dava
do bom
e do melhor
choravam porque no céu
além do basculante
o dia se punha
porque uma ânsia
uma dor
uma gastura
era só o que sobrava
dos seus sonhos.
Agora
às seis da tarde
as mulheres regressam do trabalho
o dia se põe
os filhos crescem
o fogo espera
e elas não podem
não querem
chorar na condução

Marina Colasanti