sábado, 13 de julho de 2013

Sonho





O sonho levou a mala para a porta. Abriu-a com confiança. Enfiou-se dentro dela e fechou-a. Mas não se limitou a fechá-la. Fechou-a de uma forma tão abrupta que emperrou a fechadura. Não queria que o tirassem dali. Estava onde queria estar.
Já só, na escuridão de uma mala de viagem, gritou-me a plenos pulmões. Um grito que ecoou pela casa e que trespassou as paredes, se estendeu pelos vales, pelas florestas, pelas praias.
Segui-lhe a voz. Segui-lhe a voz para me deparar com a porta e a mala fechada à porta e o sonho arrumado na mala. Os olhos encheram-se de lágrimas. A vida encheu-se de desgostos. A minha alma encheu-se de perguntas que não fiz. Tomei-lhe a mudança por desistência. E a esperança morreu suavemente dentro de mim, aos poucos, levemente, enquanto o sonho se agarrava aos cantos poeirentos  da bagagem e se fundia neles.
"Não fiz mais do que lutar por ti!", atirei-lhe, em desespero. "Nesta vida, fiz das tuas as minhas vontades. Caminhei tendo-te como caminho e meta. E é assim que me abandonas."
O sonho riu. Riu, como se a minha dor não o ferisse mas, ao invés disso, lhe desse um gozo desmesurado, lhe trouxesse uma felicidade irónica e irreal.
"Todos os dias...", ouvi-me continuar, em palavras que não sabia que queria dizer. Mas as palavras fluíam, atiradas ao ar, caindo sobre a pequena mala. "Todos os dias acordei e disse ao mundo: eu não tenho nada além do sonho. E agora? Agora vais embora? Vais assim, arrumado na escuridão, deixando-me para trás? Se não te tenho o que direi agora ao mundo? Somente que não tenho nada?"
O riso tornou a ecoar, mais cru, mais perverso. Um riso que se misturava nas minhas lágrimas e criava um ambiente agridoce de amor e ódio.
"Não vás!", implorei por fim. Depois da acusação o medo. O medo de ficar só por entre uma vida sem sonhos. "Ainda estamos a tempo, tu e eu. Eu luto por ti, tu aguentas-me em pé quando o chão quebra. Não vás! Não vás ainda. És tanto quanto tenho, nesta vida de pesadelos e desilusões."
Dessa vez, o sonho não riu. Fechado na pequena mala, ergueu o sobrolho e, sem que eu o visse, sem que eu o soubesse, suspirou.
"Foste tu que sempre disseste que me querias!", não era uma acusação. Ainda assim, movi-me com desconforto, como se as palavras queimassem. "E, no entanto, aqui estamos. Estás a lutar por mim, com lágrimas nos olhos."
Assenti, enquanto buscava no ar pesado do meu mundo de pesadelos a força para responder. "Não vás!", repeti. O sonho não fez caso das minhas palavras.
"Vou! Tenho de ir. Lutaste por mim a vida inteira, passando ao lado do que era mais importante. Já não quero ser a tua meta.", a resposta, sincera e crua, abalou-me os alicerces de uma vida mas, falando do interior da mala, o sonho continuou. "Não serei mais a tua meta mas tão só o companheiro de viagem. Agora, agarra em mim e vai atrás da felicidade".

Marina Ferraz

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